domingo, 7 de abril de 2024

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A GRANDE VIAGEM

Aninhado   em posição fetal sobre uma macia espuma e coberto por um branco lençol, Humanus foi em busca do acalento no silêncio  da noite. Luzes em penumbra,  portas e janelas abertas,   cortinas em bailarina a esvoaçarem, música erudita quase imperseptível,  respiração  silenciosa e meticulosamente executada,   entrou  em interação com o infinito. 

Olhos cerrados e em meditação iniciou a imaginária viagem. Paulatinamente  foi se afastando e saindo do corpo, flutuando e se desligando  da matéria projetou-se no espaço sideral. Através dos tempos e  em sono profundo, em levitação,  mergulhou  no cosmo.

Tangenciando os planetas, vazou o sistema   solar e alcançou outras estrelas da via láctea. Atravessou bilhões  de sistemas  e mergulhou na escuridão intergalática.   Aprofundou-se em bilhões de galáxias e  atravessou o universo.  Mergulhando  e saindo  passou a conhecer a imensidão  do cosmo e a infinitude do multiverso.

Longa foi a viagem, deu voltas através dos tempos e fez um verdadeiro regresso aos mistérios da vida. Chegou à primeira estação, 18 de setembro de 1914, choro de  criança,  uma sexta-feira chuvosa, cinco e trinta da manhã.  Naquele dia nascia uma menina,  mais um ser humano, mais uma semente para germinar e gerar outras vidas na Terra.

Vilarejo, casa e aposentos  simples. Posicionou-se  no canto da sala ao lado de um jarro, no qual  havia uma roseira.  Entravam e saíam viventes humanos, umas novas e outras mais velhas. Da cozinha, um cheiro convidativo do verdadeiro café, torrado no caco e pisado num grande pilão feito de tora de jatobá, e que inundava todos os  ambientes.  O dia clareou, ninguém notou a sua presença, continuou no mesmo cantinho,  ao lado do grande jarro com a sua bela roseira, observando o chegar, o sair, os sorrisos, os abraços e os cumprimentos das visitas. Choro de criança,  casa cheia,  dia de fartura,  muita comida, bebidas e   alegria. Tiros de bacamartes anunciaram a chegada de mais um rebento. O  invisível viajante,    no cantinho, silenciosamente  a observar, era um dia de festa. 

O sol apontou no horizonte,  o orvalho salpicava  as folhas da densa e verde mata, os pássaros voavam e chilreavam alegres com a torrencial aguada da noite. Os raios clarearam  o sertão. 

De repente, saiu pela porta do quarto, afagada e protegida  nos braços da parteira,   uma bela  menina que irradiava esperança, saúde e prosperidade para a umanidade. Uma criança linda, cabelos lisos, pele cor de jambo e que chorava copiosamente, era uma criança chorona.  Ao chegar à sala, observou, olhou, arregalou os olhos castanhos e os fixou sobre o nobre visitante. Só ela o enxergava, o que a  fez silenciar o choro. Ao mover-se nos braços  da parteira,   virava a cabecinha para onde ele se  encontrava e  sempre a sorrir.  Veio um pequeno silêncio, a cena foi se desfazendo,  a luz foi cedendo espaço à penumbra  até escurecer.  O mortal continuou a sua longa viagem  no infinito  multiverso, navegou pelo vasto espaço sideral, no cosmo. 

Quarenta anos depois, entrou numa nova estação,  18 de março de 1954,  quinta feira chuvosa,  sete horas da manhã.  Aquela criança, de 1914,  era mais uma vez a estrela da cena. 40 anos de idade,  cabelos pretos, voz segura, forças nos pulmões,  um rebento nos braços  e de olhos fixos na sua cria, assim   se pronunciou :

--” Seja bem-vindo ao reino dos humanos”.

Silêncio celestial, o perfume materno, o olhar e os sorrisos de uma criança afloraram da sua mente e se apossaram do ambiente. Em levitação, o viajante  mergulhou no espaço, dando continuidade ao misterioso deslocamento.

Viajou por outras plagas a observar as estrelas,  a profundidade do desconhecido e fez uma nova parada, estação    11 de setembro de 2013.   A estrela era  a mesma menina de 1914 e de 1954, agora  uma centenária  de coque branco, tez macia, olhos fixos e brilhosos, voz em veludo, serena e musical.  Foi  ao seu encontro,  o fixou no  seu olhar, o abraçou, o beijou  e após os afagos, mansamente balbuciou  nos seus ouvidos: 

   --“ Fique calmo,  o Senhor está me chamando, irei pessoalmente  ao seu encontro, morarei definitivamente na casa do Pai”

Se esvaindo das suas  mãos, dos seus braços  e dos seus olhos, foi se afastando, se distanciando, rindo, dançando e cantarolando,   cheia de vida e de alegria   tomou o caminho da casa de Deus, o Criador lhe chamou.

O solitário fez a viagem de volta, reviu tudo o que foi visto, entrou no quarto pela mesma  janela, olhou aquele corpo imóvel, inerte, descoberto e  vazio, agasalhou-se  nas suas entranhas  e mais uma vez nele se albergou. O sol bateu no seu rosto, o viajante abriu descansadamente os olhos e ao seu lado ouviu uma voz: 

___” Seja bem-vindo ao seu mundo, estou  ao lado do Senhor, estou   bem e  olhando por todos. Aquele menino que  nasceu no  dia 23 de julho,  no ano de 1914,    numa manhã chuvosa de uma  quinta-feira,  manda lembranças.  Aqui estamos juntos, orando e rogando por todos, estamos cotidianamente com vocês.  Onde estamos podemos continuar próximos de todos, somos onipresentes, uma vez que só Deus, o nosso Pai,  é onipotente, onipresente e onisciente”. 

Serenamente, o andarilho, ainda inebriado,  moveu o corpo, mirou  bem para onde vinha a voz  e irrefutavelmente  balbuciou:  

                 __"A benção, mamãe."

                                  Salvador, 31 de Dezembro  de 2023

                                                              Iderval Reginaldo Tenório

                                                      

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