domingo, 17 de setembro de 2023

ZEZINHO E O AMANHECER NA SERRA DO ARARIPE.

 amanhecer-alto-adriano-santori | Adriano Santori - Da Ribeira do Acauan

                 Vacas, bezerros, cordas e criadores: como pensar a técnica de tirar leite  pelos movimentos corporais?                

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ZEZINHO  E  O AMANHECER  NA SERRA DO ARARIPE, 

A SUA TERRA NATAL.

O  galo Chulipa, três vezes antes do sol nascer, cantava   para informar   quem era o  senhor mor  do terreiro. Na outra extremidade, com a finalidade de mostrar a sua localização e que aquele era o seu reduto, zurrava o jumento Jericó. 

O  jumento é um animal de origem desértica, porém existe em todos os continentes. Possui uma grande cabeça, olhos laterais, duas longas e sensíveis orelhas, uma boca larga, queixadas fortes, dentes resistentes e afiados.  As orelhas, como dois radares, de  abas  largas, captam com  movimentos rotatórios,  numa varredura de  360º, ora para cima, ora para baixo, para frente e para trás quaisquer tipos de sons. Nada escapa de suas duas potentes  e sensíveis antenas. 

É um animal inteligente, cheio de manias,  mistérios e superstições. Não tolera esporas, é vingativo e morde as pernas do condutor quando maltratado.   Enxerga e percebe, no seu trajeto, os perigos  que o homem não vê e não sente. Quando empacam é um alerta aos demais, inclusive ao homem, prova maior está na passagem bíblica entre  o rei Balaque, o profeta Balaão e a sua jumenta a caminho de Moabe, capitulo 22 ao 24 do Velho Testamento: 

A jumenta de Balaão (episódio bíblico)

Eram os dias em que Deus tirou os israelitas do Egito e os levou para Canaã, derrotando totalmente os antigos moradores daquela terra, os amorreus. Os moabitas eram uma nação vizinha dos amorreus, e ficaram assustados com a tomada de Canaã pelos israelitas:

Então, o rei de Moabe, Balaque, tentou contratar o profeta Balaão para amaldiçoar os israelitas e assim garantir a vitória para o exército moabita.

Balaão decidiu perguntar a Deus se deveria ou não amaldiçoar os israelitas. Deus respondeu com uma negativa, e proibiu Balaão de ir com os homens até Moabe para amaldiçoar os israelitas.                               

Do velho Testamento: "Dessa forma, na manhã seguinte, albardou a sua jumenta e partiu com os chefes de Moab. Mas Deus estava zangado com Balaão; por isso, mandou o anjo do Senhor para se pôr no seu caminho e matá-lo. Enquanto Balaão e os dois criados seguiam cavalgando pela estrada,  a jumenta de Balaão viu o anjo do Senhor em pé no caminho, com a espada desembainhada, e saiu pelo campo. Balaão bateu-lhe e trouxe-a de novo para o caminho".  

O animal freiou e não seguiu caminho mesmo sendo castigada com chicotadas em todo o corpo.  Assim se pronunciou: " Balaão o que fiz para merecer tanto castigo?".   

O jumento é um animal protetor  para os menores de sua raça  e para as outras espécies que com ele convive, é um ser de grande adaptação e territorial. Come de tudo, de camisas a sacos de algodão, palhas, capins e até   solas de sapatos encontradas nos monturos. Precisa de pouca água,  passa dias  sem beber e  é resistente às intempéries da natureza.   Chova ou faça sol,   lá está o asno a sobreviver, é um animal xerófilo. Vive uma média de 45 anos, diferente do cavalo, que vive   de 25 a 35 anos e é mais exigente e seletivo no comer. Ao cruzar com uma égua gerará uma belo burro, um muar, um animal híbrido e de carga, o mesmo acontece quando um cavalo cruza com uma bela asinina. O muar herda a força, a coragem e a perspicácia  do asinino; o equilbrio, a beleza, o garbo, a elegância, a altura   e a cumplicidade do equino com o seres humanos.  

Num raio de quatro quilômetros, é o jumento quem manda na caatinga, é um verdadeiro medidor dos tempos e das horas.  É testosterônico em demasia e se  enfeitiçado pelo hormônio feminino, é um perigo. Derruba cerca e cargas, invade plantações,  sabe usar os dentes com fortíssimas mordidas e as pernas traseiras com certeiros coices. Não é discreto, age, reage e atua  independente dos espectadores. Como um elefante impregnado com o hormônio sexual, a testosterona,  o jumento vira um demolidor.

Foi ele quem ajudou o menino Jesus  a escapar, em Belém, das garras do Rei Herodes  quando este autorizou o maior infanticídio da face da terra, o  Massacre dos Inocentes. (Mateus 2:16–18)

É cantado em versos, prosas e no  anedotário nacional e internacional. Tem centenas de nomes, muitos pejorativos e preconceituosos, porém continua firme e forte.  

Pela manhã, antes do sol nascer,  a brisa fria batia  nas gramíneas, nas babujas  e nos arbustos, enquanto    o orvalho da noite  precipitava-se sobre as folhagens da caatinga lhe proporcionado a  seiva da vida, e ao mesmo tempo   molhava o rosto e as vestes,  de algodão grosso, que protegia a pele áspera do  homem serrano ao dirigir-se aos currais em busca do nécta branco,   o disputado e raro leite, oriundo do ubre  de vacas de baixa produção leiteira.  Animais sem pedigree e de baixo valor venal, porém de valor nutricional, emocinal e de extrema cumplicidade, conhecida como a fêmea do gado chamado Pé Duro, uma das riquezas do homem sertanejo. 

Do bovino nada se perde, do esterco à urina, perpassando pelo cheiro e o berro, pelo couro, leite, ossos, cascos, chifres,  carne, sebo e a gordura, tudo se aproveita.  Ao ser morto por uma picada da serpente crotálica, a  cascavel, a mais temida cobra da caatinga, que inibe os movimentos musculares, causando paralisias em várias partes do corpo, aproveita-se tudo, inclusive a carne e a gordura para se fazer sabão. Quando não encontrado, pelos serranos, serve de  alimentos para os urubus e os animais carniceiros dos sertões.  É um animal abençoado, é um promotor de felicidades e de autoestima para os seres humanos, notadamente para os sofridos caatigueiros. 

Com o cheiro contagiante vindo da terra, raízes e folhas  orvalhadas, os sons dos galhos balaçantes das árvores, os cantos dos pássaros e dos galos, os falares dos  animais e   o zoar  de dezenas de chocalhos,      os viventes do arraial despertavam cheios de energia.

O vaqueiro,  com a sua corda de croá e  balde a tiracolo,   adentrava ao curral, coalhado de esterco e de urina bovina, ocupado por meia a uma  duzia de bezerros, enquanto as  suas mães,  vacas pé duro, pastavam  e bebiam soltas  ao redor do curral, com o intuito de elimentar as  suas crias pela manhã, quebrando o jejum de uma noite solitária. 

Orgulhosamente e cheio de brio, o serrano iniciava o seu mister.  Abria compassadamente  a porteira e diligentemente chamava   as vacas, uma por uma,  uma após a outra e apresentava à sua cria. Cada animal tem o seu nome, muitas são chamadas de Mimosa,  Estrela ou Mansinha, e atendem pelo nome. O bezerro ia até as  edemaciadas tetas da sua matriarca e ali iniciava-se a liberação do leite produzido durante a noite, parte para o homem e parte para alimentar a sua cria. Enquanto mais o bezerro mamava, mais a mãe o lambia e liberava o necta da vida. Mais um mistério sublime  da natureza que os homens insitem em  chamar de intuitivo e  de irracional.

Com a cabeça do bezerro junto ao ubre,  peias nas pernas traseiras da vaca,  mãos grossas do  sitiante a amaciar o túrgido alforje natural,  repleto de leite,  a cuidadosa e desconfiada mãe liberava o proteico líquido ciente que alimentava o seu filho já afastado pelo cuidadoso serrano, porém mantido na mesma posição, como se estivesse a mamar. Três entes sertanejos  em busca de perpetuar as suas espécies. 

Nos sertões só com a cumplicidade das espécies consegue-se viver . É o homem, o gado e os animais  de carga, as abelhas e  outros polinizadores, os pássaros e as aves de rapina, os roedores e as serpentes,  a flora, os astros e os fenômenos naturais, sem esta confraternização, a vida seria impossível

Enquanto a vaca  mugia,   mungia o vaqueiro, e entre um mugido e outro, o vaqueiro ia mungindo, ia mungindo até o momento em que o bezerro faminto berrava, era um  alerta, era um pedido de socorro. Informava à mãe   que o  leite não estava lhe sendo entregue, estava sendo desviado para outro mamador, iria  alimentar outras bocas, a sua genitora estava sendo enganada.  De imediato a vaca segurava o nécta  da vida,  só liberava para a boca faminta de sua cria, que com muita sede   ordenhava as  tetas com a sua áspera língua, beiços grossos e duas ou três marradas  no  ubre pseudovazio.

Num aforismo nordestino que diz, bezerro que não berra não mama, daquele momento em diante  só o bezerro poderia mamar. Terminada esta ordenha, partia o vaqueiro para outra  vaca, que mugia à procura do seu rebento.  Enquanto a vaca mugia, o vaqueiro mungia, mungia de uma a uma, de teta em teta. Era assim o amanhecer na querida Serra do Araripe do serrano Zezinho. O vaqueiro mungindo e a vaca  a mugir, o galo  cantava, o Jumento Zurrava, as vacas mugiam, os bezerros berravam, os pássaros cantavam, os chocalhos zoavam e o vaqueiro mungia.

O sol nascia, abriam-se as porteiras, os animais corriam, enchiam os pastos e o tilintar dos chocalhos preenchiam sonoramente os espaços que    cheiravam  a jasmim, cedros, cidreiras, capins, estercos e urinas, estas de um amarelo   espumante e  cobertas por borboletas de todas as cores em busca de nutrientes orgânicos e minerais.  

Mesa posta, aroma de café em toda a casa, queijos  artesanais, prato  fundo com leite fresco, espumante e pelando de quente. Farinha de milho ou de mandioca, sal, carne do sol, tigelas de coalhadas, prato de macaxeira cozida, bule vermelho  esmaltado  cheio de   café,  torrado e pilado em casa,  tapioca untada com manteiga de garrafa, ovos estrelados na banha de porco e que na maioria das vezes  a gordura caia  pelos cantos da boca. Era assim o amanhecer na  querida Serra do Araripe, berço  do menino Zezinho. E haja saudades.

Iderval Reginaldo Tenório

                             

                           De Patativa do Assaré, Antonio Gonçalves, 

                                    O grande poeta do Cariri  : 

                              Vaca Estrela e Boi Fubá (Pseudo Video)

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