terça-feira, 27 de junho de 2023

UM PAI E O ATEDIMENTO DO FILHO NUMA EMERGENCIA

 

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UM  PAI E O ATEDIMENTO

DO

FILHO NUMA EMERGENCIA

 

Relato do médico  Dr. Zezinho dos Anzóis

Era domingo, chovia muito,  a cidade estava deserta.  A pediatria encontrava-se desativada, recomendado cautela, dois eram os plantonistas de clínica médica. 

Os pacientes eram atendidos alternadamente, depois da meia noite o movimento  caia consideravelmente.

2:30h da madrugada, neste horário chegou um senhor de uns 40 anos de idade, trazia nos braços, envolto num grosso lençol, uma criança de 4 a 5 anos. Foi até a recepção, disse que o filho estava com febre e dor na garganta.  

A recepcionista explicou que não se tratava de uma emergência,  deveria procurar o serviço adequado, da mesma rede, que ficava noutro bairro e atendia estes casos, logo que o dia clareasse.  

Humildemente, o senhor sentou numa cadeira defronte a televisão, que passava a noite ligada. Pensou, refletiu, voltou para a recepcionista, tentou explicar e sem sucesso.

Solicitou que lhe mostrasse quem eram os médicos, queria falar e pedir  pelo o amor de Deus que atendessem o seu filho, foi apresentado ao profissional que deveria atender naquele horário.  

O médico da vez, respondeu que aquele caso não configurava uma emergência, poderia muito bem esperar até o amanhecer e assim pensou:

"não sou pediatra e nem otorrino, amigdalite às 2:30h da manhã, era brincadeira, por que não levou o garoto durante o dia no ambulatório apropriado, resmungou para si, amigdalite às 2 e 30, é demais, mesmo porque às sete chegará o pediatra."

Dr.Zezinho ao ver a cena e sentir naquele pai um semblante de diminuição, de inferioridade e de desvalorização como cidadão, chamou o colega, solicitou que atendesse, foi irredutível. 

Não pensou duas vezes, mandou fazer a ficha, solicitou que colocasse o pai e o filho no consultório, chamou o colega e frente a frente  iniciou a consulta, não uma consulta médico-clínico, mas uma consulta médico-social.

O pai revelou que morava na periferia, que saíra de casa às 06horas da manhã, trabalhava no polo petroquímico  numa empresa terceirizada, chamada de Gata.

O transporte era uma casinha, de madeira, adaptada sobre a carroceria de um caminhão, não tinha alimentação, garantia de emprego e era o último a chegar em casa,  no subúrbio ferroviário, depois de uma peregrinação por toda a cidade  devido o despejo dos seus pares que moravam em pontos diversos.

Naquele dia havia deixado a fábrica às 22 hora, rodara toda a cidade, era um dos últimos a descer do caminhão,  o fim da linha era no seu bairro, a sua casa ficava colada à  garagem da empresa.

Ao chegar em casa, sem uma alimentação decente, sem banho e possuído pelo cansaço, foi avisado que o menino estava com febre e esperava o pai para levá-lo ao médico.  Matou a sede, encostou a mochila e a marmita, embalou a criança e debaixo de chuva andou a pé três mil metros, pegou o trem suburbano que se conectava com o ultimo ônibus e depois de rodar 30 quilômetros atingiu o fim de linha, um turístico logradouro defronte a um grande Teatro.  Desceu a pé um íngreme, enladeirado, longo e deserto percurso de mais de três   mil metros, da grande praça ao longínquo serviço de urgência.

Na solidão do caminho, na escuridão da noite, sob o frio da úmida e torrencial chuva, arriscando as suas vidas, mergulhou na realidade.

Na cabeça um turbilhão de pensamentos, todos de baixa estima: pobre, não bonito, suburbano, pertencente a uma categoria sem valor, afro descente, cansado e  sem se alimentar. 

Foi tomado pelo desânimo, porém, tinha um filho, possuía um rei, possuía uma das razões que justificava viver, que justificava todo e qualquer sacrifício, aliás, levar o seu filho a um médico, não era sacrifício, era um prazer. Pensava no seu trabalho, na sua família, no seu pai, via e sentia naquela hora, naquele momento como era difícil a vida, como era dura, como era insignificante diante do mundo, ainda bem que existia o médico, este sim me compreendia, este sim era homem de coração bom, este sim atendia a todos os seres humanos, atendia em todos os momentos, notadamente  nos momentos de necessidades, sempre alegre e  sorridente, ainda bem que existia o médico, neste mundo só o médico, somente o médico era verdadeiramente humano. Pergutava para si, quem era ele para ser atendido, para receber a atenção daquela espécie de homem, homem estudado e importante, inclusive por ele ser um simples operário, era condição suficiente para não ser atendido, ainda assim, o médico atendia.

Atendia porque era humano, porque era bom, porque era gente, foi assim que veio pensando em todo o seu longo e difícil trajeto.  Imaginava encontrar um amigo, um amigo que lhe escutasse, que lhe desse atenção, que lhe desse socorro, ainda bem que existe o médico.

Disse também que saiu preocupado como voltaria para casa, com que carro, com qual dinheiro?  se perdesse o transporte como iria ao trabalho no outro dia? sem dormir, sem comer, sem condições de faltar e se fosse demitido? porém nada disso era mais importante do que aquele filho, nada tinha mais importância do que a saúde do seu filho.

O colega frente a frente, escutava silenciosamente aquele abnegado cidadão. Aquele depoimento era mais um desabafo, um desabafo social, um desabafo para a humanidade e para  com ele mesmo, era um desabafo encravado no seu inconsciente, aprisionado no seu Eu,   quem sabe para quem? talvez para com DEUS. O colega escutava calado, silencioso e com olhar perdido, o colega estava noutro mundo, encotrava-se  bem distante, não sei onde, num lugar longínquo; cabisbaixo.

Repentinamente, com os olhos marejados, voz trêmula, rompeu o silêncio, abraçou o guerreiro pai e balbuciou: 

"PAI, AH SE TODOS OS PAIS FOSSEM ASSIM! COMO SERIA DIFERENTE".

Pegou as rédeas do atendimento, arranjou energia não sei aonde, atendeu, conversou, riu, ofereceu o seu lanche noturno e o café da manhã para aquele pai exemplar. Alimentou a criança, pediu-me que passasse o plantão pela manhã e com a criança medicada, a bolsa cheia de amostras e muita disposição foi conhecer na periferia onde morava um homem, onde morava um cidadão, onde morava um verdadeiro pai e saíram os três na mesma condução, tendo o médico assistente  como o condutor.

Ainda hoje, nos encontros da vida, Dr Zezinho escuta do nobre e gentil colega:

"Meu amigo, muito obrigado, a medicina não é só conhecimentos técnicos é muito mais. A medicina é o social, é o humanismo, é a ética, é o altruísmo, é a essência da cidadania, é uma das representantes fiel de Deus." 

 "Ser médico enfim, é ser um misto de tudo quanto é de bom, ser médico é ser provedor, acolhedor e compreender os encontros e os desencontros do homem . Ser médico, na essência da vida,  é apenas ser Médico. APENAS."                        

 Iderval Reginaldo Tenório

 

 

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