O HOMEM DO SERTÃO
Ao escutar o chamamento de sua
cadela Piaba, seu Joaquim, aos 76 anos, tomou o
caminho da capoeira.
Animal de latido forte, respiração ofegante e grunhido estridente, fungava desgovernadamente. Ao lado as duas filhas, Baleia e Peixinha, abaixo do seu focinho um tatu peba prestes a escapar.
A presa brigava ferozmente pela vida, esperneava desesperadamente, não estava ali para morrer, três contra um, era uma briga hercúlea, uma contenda desigual.
Piaba, a anciã, estava cansada e sem forças, Peixinha a caçula, uma cadela branca, magra e preguiçosa, mal tinha coragem para latir, e quando latia, era um latido fino, curto, incompleto e sem expressão, um latido sem identificação, sem força e sem coragem. Peixinha era a retratação fiel do insucesso e da indiferença, o seu latido não ecoava, não foi registrado na mente dos racionais ou dos irracionais da região.
Peixinha recebia tudo nas mãos, sem esforços, era uma voraz consumidora. Na linguagem sertaneja, nascera sem faro, latia amiudado para tudo e para todos, no primeiro grito que levava, botava o rabo entre as pernas, baixava a cabeça, transformava-se num pacote e saia sorrateiramente medindo os passos, apesar de nova, dormia muito e não tinha iniciativa.
Baleia, a filha mais velha, era uma cadela musculosa, dentes afiados, pontiagudos, amolados, língua grande e molhada, olhar fixo, pele sem defeito, focinho preto, patas largas, rabo comprido, branco com rajas alaranjadas. O seu latido era forte, latido de uma guerreira e que todos os cachorros da redondeza respeitavam.
Quando Baleia latia os demais escutavam com respeito. A cadela tinha uma inteligência aguçada, latia pouco e nunca se deitava dentro de casa, sempre no oitão, nos fundos ou na frente da morada. De olhos abertos e narinas dilatadas, sempre de prontidão e a observar a redondeza.
No mato, quando saia para caçar, deixava o capiau junto à fogueira. Orelhas atentas e narinas abertas sondava o ambiente por todos os lados, qualquer balançar de arbusto, estava lá Baleia a averiguar. Com relação a caça, primeiro deixava a presa cansar, exauridas as forças, Baleia aplicava o golpe final, sacrificava o animal. Herdara da mãe todas as qualidades. Foi assim que a cadela se comportou diante de sua mãe no encalço do tatu peba. A caça não media esforços para escapar das garras da velha cadela. Disputava com a senil, a loteria da vida, todo o esforço é pouco para conquistar a ameaçada vida.
Peixinha, a magrela, latia para dentro, com medo e sem rumo, latia por latir. Piaba exausta, ofegante, coração acelerado estava entregando os pontos. Diante da cena, dos fatos e da luta, a cachorra Baleia tomou a dianteira.
O tatu peba desorientado, cansado e acuado estava prestes a entrar na toca, e uma vez emburacado, só sai quando se sente seguro. Muitas vezes a toca tem duas bocas, ele entra por uma e sai pela outra, e deixa os caninos a latir, fuçar e farejar a boca de entrada até desistir. Na maioria das vezes, só vira comida se o caçador cavar à sua procura, a cachorra sabe muito bem destes detalhes, nasceu vendo a sua mãe caçar.
A nova líder não titubeou, ficou frente a frente com a caça, mirou a sua cabeça, fixou as patas trazeiras no banco de areia e fincou as presas no valente tatu, foi a gloria de seu Joaquim, foi o golpe final, mais uma etapa no ciclo da sobrevivência.
Ciclo da lida diária dos seres vivos, que fazem de tudo para escapar da fome e permanecer vivo nos esquecidos sertões do Nordeste.
Os irracionais brigam entre si pela sobrevivência, os maiores eliminam os menores, lutam pela bóia diária, mas não contribuem para o desequilíbrio da natureza, já os homens em busca do pão de cada dia, abandonados pelos poderosos, lutam entre si e contra os animais, muitos em processo de extinção.
Os
capiaus, num salvem-se
quem puder, com as suas peixeiras, espingardas, enxadas, facões e foices propiciam pequenas devastações da fauna e
da flora, numa luta desigual e desumana, brigam pela subsistência.
Neste dia, seu Joaquim, esposa e filhos tiveram carne para comer. Foi assim por muitos anos a vida dos Nordestinos natos da Serra do Araripe. Homens da Caatinga, mãos grossas, voz gutural, tez esturricada, dentes falhos, pensamento curto e mente limitada. Nordestinos dos currais, dos roçados, das coivaras, das miragens, das crenças, da dependência e da subserviência.
Salvem-se quem puder, continua sendo o lema do árido Nordeste, regado pelos trovões da desinformação, da exploração e da inexistência das chuvas de cidadania .
Salvador, 17 de Abril de 2023
Iderval Reginaldo Tenório
A composição de Edeor de Paula foi interpretada na avenida por Nando e Baianinho[5].
Entre os cantores que regravaram o samba estão Mestre Marçal e Dudu Nobre[6]
Perfeito. É como se estivesse vivendo a cena da caçada..
ResponderExcluirParabéns meu doutor
Mestre, que história linda! Retrata o dia a dia do povo sertanejo, que sobrevive a Trancoso e barrancos, mas que nunca desiste. Parabéns.
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