A vida e as suas incógnitas
Relata Zezinho, que na sua cidade havia um senhor muito bom para todos os seus habitantes. Não era oriundo de familias ricas e nem de linhagem política . Apesar da baixa escolaridade era culto , inteligente, prestativo e solidário. Para a população era considerado um verdadeiro sábio.
Da universidade da vida, cursara presencial e intestinalmente muitas áreas dos conhecimentos ,
principalmente das humanas e sociais . Com muito trabalho, seriedade e dedicação
conseguiu com o suor do seu próprio rosto educar os seus 14 filhos, a maiora alisou os bancos da Universidade.
O tempo passou, os filhos cresceram e ascenderam culturalmente na escala social, fruto dos esforços, ensinamentos e sagacidade do grande mestre.
Á proporção que acumulava conhecimentos, o bom senhor envelhecia com saúde, dignidade, cidadania e o respeito de todos os que lhe rodeavam.
Como é peculiar à família nordestina, anos após anos, os familiares procuravam lembrar ao velho o seu valor e importância para a sua prole, realizavam um encontro no dia do seu anversário .
Dos filhos , um havia voado mais alto e galgado postos estratégicos na carreira pública. O tempo passava e de todos os descendentes, este filho nunca estava presente aos eventos, a agenda nacional consumia o seu precioso tempo a discutir as demandas da sociedade .
Muitas vezes, quando se lembrava, nomeava um preposto: um irmão, um primo, um amigo e até mesmo um funcionário para lhe representar. Jamais negara ajuda financeira, era sempre influente nas questões decisórias da família, porém à distância. Era um verdadeiro adminstrador, um exímio e admirável profissional .
Com o passar dos anos, o ancião foi perdendo as forças. Músculos atrofiados, cabelos ralos e brancos , mente apresentando falhas e o afastamento do trabalho iam paulatinamente enfraquecendo a sua memória.
Perguntava onde estava, quem era , o que fazia e de vez enquando regressava ao seu mundo de criança, pedia para ir à casa dos avós, dos tios que já se foram e dos amigos de infância.
A tradicional família continuava as suas comemorações, e ano após anos, o filho notável era representado por outra pessoa, até o dia em que foi convocado e até intimado por todos da família a comparecer ao 99º aniversário do patriarca, não poderia faltar.
Ao chegar, entrou no quarto do seu genitor, sentou-se na cabeceira da cama e bem junto ao velho pai, falou :
"Peço a sua bênção pai, a bênção pai"
O velho imobilizado e aéreo nada respondeu. Repetiu mais alto:
"A Bênção pai , a bênção "
O velho abriu os olhos, mexeu com a cabeça de um lado para o outro, fez esforço para levantá-la, mirou o rosto do nobre senhor e com a voz trêmula balbuciou:
"Quem é o senhor? De onde veio? Onde mora? Quem é o seu pai? "
O filho parou, pensou, abaixou a cabeça e disse :
"A bênção pai, eu sou seu filho . O seu filho do meio, é que faz mais de 20 anos que não vejo o senhor, faz mais de 20 anos que não venho à nossa terra, eu trabalho no Ministério, trabalho no governo, moro na capital do país"
O pai mais uma vez falou:
"Quem é o senhor? De onde o senhor veio? Onde o senhor mora? É filho de quem? O que faz?"
O filho mais uma vez informa em voz alta e já discrente.
"Sou seu filho, seu filho"
O velho respondeu em voz baixa.
“Eu lhe abençoo, não sei quem é você, não estou lhe reconhecendo, a minha memória está curta, se você diz que é meu filho, é porque é meu filho, porém eu não me lembro de você”
Desencantado pelo vasto tempo que havia visto o seu pai , a amnésia paterna e o que presenciara não conseguiu entender o que se passava.
Mais
tarde soube por intermédio dos irmãos, que o seu pai, num processo
fisiológico, fora perdendo a capacidade de memorizar, verbalizar e de
locomoção, passando a lembrar dos fatos repetitivos, dos rostos cotidianos,
dos que de mais perto convivera nos últimos dias, primordialmente dos cuidadores, do cachorro e dos reles utensílios de
primeira necessidade: banheiro, penicos , televisão, o abrir e fechar das
portas , o bate-bate das panelas, dos pratos, dos talheres
, o ranger das velhas e enferrujadas
dobradiças manipuladas para o arejamento do ambiente e a entrada do sol.
Numa onda de culpa entendeu que o pai, devido a sua ausência, havia apagado da mente quaisquer resquícios ou lembranças de sua existência. Havia apagado de sua mente até mesmo a legitimidade paterna, entendeu que foi a sua ausência , a distância e o descaso para com o velho pai que apagara a sua existência como filho.
Desconfiado, deprimido e solitário partiu para a conquista, para a luta e para a briga. Esforçou-se, porém o velho aos poucos foi apagando da mente os dados e imagens cerebrais , aos poucos foi esquecendo , esquecendo, esquecendo... até o dia em que não mais lembrava nem de si, até o dia em que entrou em vegetação.
Com os fatos presenciados, o filho passou a entender que o seu pai precisava era de abraços, carinho, respeito , de sua presença e não de ajuda financeira ou de gestos pecuniários, estes atos jamais substituirão um simples abraço e o calor que emana de cada corpo.
Foi-se o velho, com ele foi sepultado todas as suas memórias e conhecimentos, restando as boas lembranças e os seus ensinamentos.
Para o filho ficou a certeza que foi 20 anos atrás o último dia em que o seu pai lhe viu, ficou gravado na sua memória que os seus filhos não eram netos do seu pai e mais claro ainda que o homem é a mente, o homem é a comunicação , o homem é fruto de sua raiz, o homem é o cérebro.
Ficou claro e evidente , que o núcleo familiar é o maior elo entre o homem e a vida, que jamais esqueça a importância dos seus genitores.
Por mais longe que o homem vá, por mais importante que seja a sua posição, as suas raízes deverão continuar fortes e firmes, terão que continuar aderidas e presentes em toda a sua existência.
Um dia, cada cidadão, sentirá o sabor da sua existência. Sentirá o âmago das suas raízes e dos seus vedadeiros amigos , daqueles que incondicionalmente lhe amam.
"Sejas um bom pai para os seus filhos , que um dia serás um bom pai para os seus pais"
Iderval Reginaldo Tenório
Adendo:
Cuide dos seus genitores ou daqueles que lhe criaram . A neurociência mostrou e mostra que depois dos 78 ou 80 anos apenas 20% dos idosos administram a sua vida .
Depois desta idade, a única riqueza e preocupação que o idoso tem é com a sua prole.
Nesta época cibernética, de senhas, numeros e de golpes são os idosos os principais alvos.
Todo o cuidado é pouco, mesmo porque depois dos 80 o envelhicimento mental é muito rápido.
Não deixe de visitar os seus genitores. São frágeis em tudo e a velocidade de adoecimento é imensa.
Visite com frequência os seus idosos, notadamente aqueles que têm dificuldades em se comunicar por qualquer problema e estão aposentados , presos nos seus domicilios e sem condições de visitar os filhos por conta própria .
. Não seja negligente com os seus pais.
Iderval Reginaldo Tenório
24 de Janeiro de 1981
Iderval Reginaldo Tenório
6° Ano de Medicina da FAMED-UFBA
As quatro estações - Vivaldi - YouTube
- Antonio Lucio Vivaldi (Veneza, 4 de março de 1678 — Viena, 28 de julho de 1741
Raízes fortes mantendo a flexibilidade na vida sempre
ResponderExcluir