sábado, 29 de maio de 2021

As Gargalhadas de seu Mocim.

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Rádio saudosista relembra o que foi sucesso popular no Brasil | Portal  Memória Brasileira

 As Gargalhadas de seu Mocim.


Ao adentrar  não aguentou a decoração da sala,  deslumbrou-se com os  enfeites da estante , os diversos quadros mostrando a família,   os painéis de informações , as esculturas das coisas do sertão  e nem mesmo as   estátuas do Padre Cícero e do Frei Damião escaparam da sua visão . Desmanchou-se em risos, não conseguia olhar nos olhos do médico, era um olhar de realização, de superioridade, da desforra, do esvaziamento das mágoas, era o olhar da vitória. A cada detalhe, mais risos, ficou exausto de tanto riso.

                               "Doutor há muito tempo que não tenho dado um único sorriso, só sofrimentos, só mesmo o senhor para me fazer rir, obrigado doutor . Mais uma vez se desmanchou em intermináveis gargalhadas."

Se refez, olhou para o médico, perguntou   qual era seu interior  e onde havia se formado. Começou a fazer comentários da inusitada sala. Falou que o ambiente estava mais para museu do que para consultório, mais para o passado do que para o presente ou futuro, perguntou se aquele rádio de 1930  funcionava, lembrou muito do seu avô , do seu pai e ficou assombrado quando no toque de um dos botões surgiu um som grave de uma viola pantaneira, da lavra da maior violeira brasileira, a Helena  Meirelles,  depois se deliciou com um som aconchegante do velho Gonzagão, A volta da Asa Branca, do compositor Zé Dantas. Não se conteve,  levantou-se, encostou as orelhas na parte frontal do aparelho, abaixou e elevou o som, ficou impressionado, era igualzinho ao do seu avô .

                     "Doutor este rádio é igual ao do meu avô,  me lembro até da sua voz, do seu cheiro, das suas mãos ressecadas e do  cuidado com o seu rádio, estou na Fazenda do Tio Chiquim"
 
Não conseguiu ficar em silencio, pegou um candeeiro  que estava sobre o rádio e pronunciou o nome de sua vó, riu ao avistar uma máquina de costura  e veio à  mente a sua tia Cotinha, tão boa, tão caridosa, tão atenciosa, era a  mais velha, era  franzina , inclusive Deus já levou. Não conseguiu calar  quando avistou um fruto nordestino, um jatobá, os olhos lacrimejaram, pois no seu sertão quando menino, era o único bocado a lhe matar a fome quando perambulava à caça de alguns nambus , preás e juritis,  caiu em prantos.

 
                      "Ah! seu doutor como era bom , tudo  era alegria, como o mundo era bom , puro   e de todos os homens   da terra"
 
                  Os risos foram desaparecendo e aos poucos a razão foi se aproximando e junto com a emoção o homem começou a falar de sua vida, a explicar à filha como foi a sua infância nos cafundós da Paraíba, a raridade da água, a seca de 32, os conselhos do Pe Cícero e o quanto importante foram os seus antepassados e que há muito não se lembrava das pessoas como também do seu velho torrão. 
 
Contemplando o ambiente, sentou na cadeira do paciente, pregou os  olhos num quadro 100 X150 mostrando uma velha estação,  os trilhos envelhecidos,   um trem cambaleante e uma criança esquálida no batente de uma choupana,  uma serra lá no fundo com os arbustos cinzas. Olhou, balançou a cabeça, mirou a face do médico e assim se expressou .

            "Doutor,  valeu, só esta visita valeu, mesmo que não fique bom de minha enfermidade, valeu, mas valeu mesmo.  Viajei no tempo e no espaço, voltei ao meu Seridó. Valeu."

  Iniciei a consulta, perguntei por  suas origens, do seu Estado natal, profissão, pais, avós, das brincadeiras na infância,  das namoradas, das festas juninas e de fim de ano, se havia tomado banho de rio, se morou em casa de sopapo,   se falou e andou  na época certa, se já teve sarampo ou catapora . Falei dos   seus filhos,  do seu trajeto como ser humano,  da dureza  de hoje se encontrar com 85 anos , vivo, lutando, brigando , muitas vezes desvalorizado, incompreendido e injustiçado,  uma vez que   na vida só fez mesmo foi trabalhar, trabalhar para educar os filhos e enriquecer o país em troca de quase nada.

                                  Neste momento notei  mudanças no seu semblante.

 Após este preâmbulo, olhei firme para todos o seu corpo , parte por parte,   indaguei por sua saúde detalhe por detalhe, ponto por ponto, sintomas por sintomas, enquanto olhava e perguntava, o nariz o cheirava à procura dos seus odores e dos odores das patologias   . O coloquei numa macia maca, procurei edema em membros inferiores, palpei as suas vísceras, os gânglios ,  realizei a percussão abdominal, auscultei os pulmões e o coração, isto    parte por parte, sempre a descrever para seu Mocim, depois olhei   todos os seus exames. Trazia na lapela um diagnóstico sombrio de  péssimo prognóstico, era uma doença maligna em avançado estado, inclusive com  ascite e disseminação para outros órgãos, não aguentava mais procurar médicos e sem solução.

De posse dos seus dados esbocei um rascunho  do aparelho digestório, localizei a origem do seu problema, martelei didaticamente órgão por órgão,  para que servem, o que fazem e como se encontravam, explanei a sua evolução.
 
Expliquei que o homem no país vive em média até os 74anos e ele com 85 já havia ultrapassado 11 anos, mandei que o mesmo relembrasse dos seus amigos de infância, coloque em uma única mão contando nos dedos quantos estavam vivos, quantos ainda saboreavam um feijão com toucinho e farinha, ele não se conteve e disse:

           "E bem vividos doutor, bem vividos, o senhor esqueceu da rapadura  dos sertões das cidades de Monteiro e de Campina Grande."


 Completei:

                           "vividos no trabalho, no respeito, na honestidade e com seriedade, não como muitos que se dizem importantes e só servem para subtrair o pouco dinheirinho do povo, muitos estão exercendo cargos políticos."

                        "Pura verdade doutor, pura verdade .  Eduquei todos os meus filhos com o salário da leste e com o suor do meu próprio rosto.  Eu só tenho o ABC doutor, o ABC, mas conseguir educar os meus filhos, hoje um é engenheiro da Petrobrás, outro é Professor  e o outro é Medico, médico numa cidade do interior, muito procurado pelos seus pacientes, não é porque é meu filho não doutor, mas é um bom médico, todo mundo gosta dele, desde pequeno que é muito estudioso, toda semana me telefona e ainda manda uma coisinha todo mês. Sei que  está difícil, mas não esquece de mim e nem da sua velha mãe. Esta aqui é a Dolores, a  caçula, estudou para Assistente Social, casou com um colega do senhor, está muito bem."


  Complementei:

                           "Seu Mocim é de pessoas como o senhor que o Brasil precisa, aliás,  foi o senhor quem construiu  este país com a força dos seus braços .  Naquela época sem estrada, sem luz, sem telefone, nem geladeira existia , se existia só os ricos, só os mangangões, só aqueles que mandavam, só os coronéis possuíam, o resto  era  sofrimento, existindo a comida já estava bom demais, mesmo assim lá estava o senhor na labuta"

                        "Êita que doutor danado, era  isso mesmo doutor, era assim mesmo."

 E mais uma vez os olhos marejaram, inclusive os olhos da dedicada filha .

Foi realizado um minucioso exame físico, o que confirmou a gravidade do caso.  Explicado ao paciente que se tratava de uma doença que não necessitaria de cirurgia, que ele poderia comer o que quisesse desde quando não prejudicasse a sua saúde, que poderia passear, ir à praia , visitar os seus parentes na Paraíba, trazer um bom queijo  coalho para o seu médico e que não deixasse de comparecer à clínica nestes próximos 15 dias. Aos familiares informado que se tratava de um caso inoperável devido as metástases, a gravidade e outras doenças adquiridas durante a dura vida que levou .

De pronto a filha disse:

                     "Doutor , nós queríamos ouvir mais uma opinião e pai disse que se fosse para operar ele não aceitaria."

A conversa continuou por mais alguns instantes, o abraço da despedida foi mais efusivo do que o da chegada, foi um abraço mais forte, do desprendimento, da conquista, o abraço como  de dois velhos amigos que há muitos anos não se viam, o abraço da compaixão ,  da liberdade e  do entendimento.

Termino informando que o paciente passou a ser um grande amigo, o consultório começou a fazer parte de sua vida , sempre que necessário. Muitos foram os momentos de alegrias, de puro entretenimento e muitas histórias recuperadas, passei a frequentar a sua casa  e conhecer todos os familiares.

Usufruir de bons papos , enriquecedoras prosas e saborosas relíquias da culinária brasileira passaram a ser rotina, seus filhos me consideram irmão.

Como o tempo não perdoa  e o Criador sabe o que faz,  o  amigo foi se familiarizando com seu quadro, tomou conhecimento da sua enfermidade.  Comentava que o homem é um ser mortal e que todos tem o seu dia para falar mais de perto com Deus .
Alegre como  um menino foi plantando alegria , foi aproximando os familiares com as suas mensagens,  até o dia de sua audiência maior com o Criador.
Exatamente 360 dias depois foi realizado a missa de 7º  dia em homenagem ao o meu querido amigo , que muito riu, dançou, cantou e me abraçou no  humilde, simples e singelo consultório que muitas alegrias trouxe.
Nos seus últimos dias, na cabeceira do leito, ou melhor, na cabeceira de sua cama, rodeado de familiares e amigos, olhava e dizia:
"Amigo doutor, valeu, valeu e como valeu"

Convicto de que  daqui há muitos e muitos anos, quando me encontrar quase que irreconhecível pelos janeiros acumulados e  ao chegar onde muitos já estão,  não serei um estranho no ninho, chegarei contente e cônscio da missão cumprida  ,  sinto que lá, LÁ, ONDE  DEUS MORA e se for merecedor, serei muito bem recepcionado.
  
Foi assim que ganhei mais um amigo e foi assim que aumentei a minha família. 
          
                  Salvador, 30 de julho de 2006


                  Iderval Reginaldo Tenório
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