quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Tempo da ciência não é o da pressão política para a aprovação de uma vacina, destacam cientistas

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Tempo da ciência não é o da pressão política para a aprovação de uma vacina, destacam cientistas

Suspensão dos testes mostrou que o tempo necessário para o desenvolvimento de uma vacina — que antes da Covid-19 costumava ser de no mínimo quatro anos — não é o que querem governos
Ensaios clínicos em centro da Unifesp, em São Paulo: testes foram interrompidos em todo o mundo, inclusive no Brasil Foto: AMANDA PEROBELLI / Reuters
Ensaios clínicos em centro da Unifesp, em São Paulo: testes foram interrompidos em todo o mundo, inclusive no Brasil Foto: AMANDA PEROBELLI / Reuters

RIO — O maior impacto da suspensão dos testes da vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford, após a detecção de um caso de “reação severa”, será o aumento do tempo até a aprovação de imunizantes contra a Covid-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu, ontem, ser improvável ter uma vacina comprovadamente segura e eficiente para amplo uso antes de 2022. O tempo da ciência não é o da pressão política para a aprovação de uma vacina, destacam cientistas.

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Estão suspensos em todo o mundo, inclusive no Brasil, os estudos da vacina. No Brasil, ela é testada no Rio de Janeiro e na Bahia pela Rede D’Or e em São Paulo pela Unifesp. O Ministério da Saúde assinou um acordo com o AstraZeneca para que a Fiocruz produza o imunizante. Na terça-feira, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, chegou a dizer que a vacinação começaria em janeiro.

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Pressão política

A AstraZeneca não informou prazos para a retomada do teste. Mas esse tipo de avaliação costuma levar meses, disse o virologista da UFRJ Davis Ferreira. Porém, ele observa que o caso de forma alguma invalida essa e as demais vacinas.

Os testes avaliam se uma vacina, qualquer uma das 239 em desenvolvimento no mundo, é segura e eficaz. A pneumologista Margareth Dalcolmo, da Fiocruz, diz que é normal que testes sejam interrompidos quando se detectam reações:

— Para isso servem testes. Suspensão não é reprovação. A interrupção é temporária. Estou confiante de que a vacina continuará a ser testada após a investigação — explica Dalcolmo, que conversou com a equipe de Oxford responsável pelos estudos clínicos.

Há enorme pressão sociopolítica sobre os desenvolvedores de vacina. A suspensão dos testes, porém, mostrou que o tempo necessário para o desenvolvimento de uma vacina — que antes da Covid-19 costumava ser de no mínimo quatro anos — não é o que querem governos, salienta Ferreira.

A Rússia planeja vacinar sua população no mês que vem, ainda que sua vacina ainda esteja com testes inconclusivos.

O presidente dos EUA, Donald Trump, em campanha por reeleição, quer um imunizante até novembro. Já colocou US$ 10 bilhões e adotou estratégia de produzir doses em escala industrial antes mesmo de saber que a vacina funciona com segurança. Assim, se aprovada, ela poderia começar a ser imediatamente distribuída.

Mas na última terça-feira os fabricantes das nove vacinas em fase três, a mais avançada, inclusive a AstraZeneca, emitiram declaração conjunta para afirmar que “ficarão com a ciência” e não pularão testes de segurança e eficácia. A revista Nature disse que, agora, os laboratórios se tornarão ainda mais cautelosos e poderão estender seus prazos.

Pouco se sabe sobre a reação severa. Em ao menos uma ocasião no teste, sabe-se que um paciente teve mielite transversa, um tipo de inflamação da medula espinhal. O episódio está descrito no documento que voluntários do teste da vacina assinam como termo de consentimento. Não está claro se a interrupção ocorrida agora seria a segunda, pelo mesmo motivo.

O CEO da AstraZeneca, Pascal Soriot, disse ao site médico Stat que, apesar da reação séria, o diagnóstico não está fechado, e a paciente melhorou, podendo talvez receber alta hoje.

Mielite transversa

A mielite transversa é uma doença rara e autoimune. É causada pelo ataque de organismo à baía de mielina que cobre os nervos da medula espinhal. Provoca paralisia e incontinência urinária e intestinal, por exemplo. Já foi associada antes a outras vacinas, como sarampo, rubéola e caxumba. Mas essa associação foi totalmente descartada. Essas vacinas não a provocam.

A doença pode ser causada por infecções por variados vírus e bactérias, ataque de anticorpos do próprio corpo, fatores genéticos.

A plataforma da vacina AstraZeneca/Oxford é nova. A base é um adenovírus de macaco que carrega uma proteína-chave do Sars-CoV-2 chamada S. Poderia o adenovírus ter levado à produção de anticorpos que deflagraram uma reação indesejada? Não se sabe, salienta o professor titular de virologia da UFRJ Amilcar Tanuri.

— Temos muitas incertezas porque se trata de uma plataforma nova de vacina, nunca usada antes, e também de um vírus novo, o Sars-CoV-2, que provoca uma doença nova, a Covid-19. Por isso a avaliação do caso de reação precisa ser feita com total transparência — frisa Tanuri.

Mas Tanuri diz que no caso dessa vacina a comprovação da eficácia seria uma questão ainda maior do que a segurança. A mielite transversa já foi associada à Covid-19, com casos documentados nos EUA. Não se sabe se a vacina pode não ter funcionado e a pessoa ter tido mielite em função da Covid-19. Ele observa que é menos provável porque o laboratório já saberia, posto que as pessoas são testadas.

Ferreira acrescenta que pode ter sido um problema da própria pessoa, sem relação com a vacina, e isso também deverá ser investigado. Mesmo que se trate de um caso raro, a investigação precisa ser criteriosa e identificar sua prevalência na população.

— Um caso em 50 mil não é tão raro se considerarmos o número de pessoas que deverá ser vacinado, os 7 bilhões de habitantes do planeta. E aí será preciso avaliar a relação custo-benefício, entre as possíveis reações e as mortes por Covid-19 evitadas — explica Amilcar Tanuri.

O Ministério da Saúde afirmou ontem que “é cedo para fazer qualquer afirmação sobre falhas” e sinalizou que o acordo com a AstraZeneca, por ora, segue adiante.

 

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