sexta-feira, 20 de março de 2020

Coronavírus resgata medidas restritivas da epidemia de gripe espanhola, que matou até o presidente do Brasil

HÁ CEM ANOS

Coronavírus resgata medidas restritivas da epidemia de gripe espanhola, que matou até o presidente do Brasil

Hospital repleto de doentes contaminados com a gripe espanhola, em 1918
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Enquanto a gripe espanhola avançava sobre os moradores de São Paulo, em outubro de 1918, o Serviço Sanitário do Estado publicava uma série de recomendações para ensinar a população a se prevenir. O objetivo era impedir a disseminação da doença, que vinha matando milhões de pessoas na Europa e nos Estados Unidos. Reproduzida pelos jornais na época, a lista de orientações aconselhava o povo a tomar medidas como "fugir das aglomerações", "não freqüentar teatros e cinemas" e "não fazer visitas", além de "tomar cuidados higiênicos". Ao mesmo tempo, escolas públicas, cinemas, teatros e parques foram fechados. Igrejas restringiram o público das missas, principalmente à noite. 


Mais de cem anos depois, governos de todo o planeta adotam medidas parecidas para conter uma pandemia que pode contaminar uma parte considerável da população global e paralisar a economia internacional. Em 1918, a informação chegava a uma parcela pequena do povo, que ficou amplamente desorientado e desassistido. O esforço de comunicação para impedir o coronavírus, porém, conta com a agilidade da era da informação, o que torna mais fácil a conscientização.


- A gripe espanhola nos ensinou que uma doença aparentemente banal, como uma gripe, pode se transformar em algo mortal. Esta e outras epidemias deixaram a  sociedade mais alerta - explica a pesquisadora Liane Maria Bertucci, doutoura em História Social pela Unicamp e professora de História da Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). - Como os cuidados preventivos contra o coronavírus são muito parecidos com aqueles do combate à gripe espanhola, estamos vendo se espalharem pela internet as mesmas recomendações e as medidas restritivas que os jornais de São Paulo publicavam há cem anos. Mas, hoje, a população tem mais acesso à informação, a epidemia atual está gerando uma reação mais precoce


Mulheres trabalham com máscaras durante epidemia de gripe espanhola, em 1918
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De 1918 a 1920, uma estirpe do vírus Influenza A do subtipo H1N1 contaminou cerca 500 milhões de pessoas (um quarto da população mundial na época) e matou até 40 milhões de nossos antepassados, segundo estimativas. 

Análises histórica sugerem que a gripe espanhola começou em um campo de treinamento de soldados no estado americano do Kansas, entre março e abril de 1918. O vírus se alastrou velozmente pelo mundo. Entretanto, os governos dos países envolvidos na Primeira Guerra Mundial (julho de 1914 a novembro de 1918) censuravam as notícias sobre a epidemia, para não abater os ânimos das tropas. Como a Espanha estava neutra no conflito, os meios de comunicação locais divulgavam livremente as informações sobre "milhões de mortes" na Europa. Esta situação criou a falsa impressão de que a gripe havia começado na Espanha.



A doença chegou ao Brasil em setembro de 1918, a bordo do navio inglês Demerara, que desembarcou doentes em Recife, Salvador e Rio. O vírus se espalhou pelo país rapidamente, matando cerca de 35 mil pessoas. Apenas no Rio, foram registrados 14.348 óbitos entre outubro e dezembro de 1918. Em São Paulo, foram cerca de seis mil mortes ao todo. A epidemia vitimou até mesmo o presidente do país. Eleito para um segundo mandato (ele já tinha governado de 1902 a 1906), Francisco de Paula Rodrigues Alves não tomou posse, no dia 15 de novembro de 1918, porque estava "espanholado". O político morreu semanas depois, em janeiro de 1919, confinado em seu apartamento na Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, Zona Sul do Rio, aos 71 anos de idade.


O presidente Francisco Rodrigues Alves, morto pela gripe espanhola, em 1919
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Segundo a médica e pesquisadora Dilene Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) voltada para a história da saúde, hoje estamos muito mais preparados, em termos técnicos e científicos, para lidar com uma epidemia de gripe. Mas ela frisa a importância da política pública.
- Havia algumas recomendações muito similares na época, mas hoje temos muito mais condições técnicas e científicas para combater o coronavírus. Há cem anos, não havia, por exemplo, o volume de informações que temos sobre a evolução da epidemia. Grande parte da população não tinha acesso ao conhecimento sobre o assunto. Agora, a informação de utilidade pública alcança muito mais gente e de maneira muito mais rápida - compara Dilene Nascimento. - Mas é preciso haver seriedade na política pública, com investimento em saúde. Infelizmente, vivemos no Brasil uma situação de fragilidade, na qual o presidente adere a uma manifestação e aperta as mãos das pessoas, quando devia estar em isolamento.


Na época da gripe espanhola, as recomendações do Serviço Sanitário de São Paulo circularam nos jornais de forma resumida, sob o título de "Conselhos ao Povo". Somadas às orientações que valem ainda hoje, como a recomendação aos idosos, que deveriam "aplicar-se com mais rigor ainda todos esses cuidados", as autoridades receitavam tomar sal de quinino antes das refeições, como preventivo, algo que não se faz mais. Não havia, entre aquelas recomendações, a orientação para lavar as mãos, o que dá a entender que as autoridades não tinham noção da importância desse hábito, hoje considerado essencial para impedir o contágio.

O informativo "Conselhos ao Povo", com orientações para conter a gripe espanhola
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Não faltaram críticas referentes à demora das autoridades para reagir ao aumento no número de casos. O diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, Artur Neiva, por pouco não perdeu o cargo. Segundo o Arquivo Público do Estado de São Paulo, somente no dia 15 de outubro, dois dias depois do primeiro óbito na cidade, o órgão decretou estado epidêmico. A partir de então, começaram as restrições. Escolas, cinemas, teatros e jardins foram fechados. Ao fim do ano letivo, os alunos foram aprovados automaticamente. Igrejas tiveram que reduzir o público das missas. Enterros de mortos não podiam ser acompanhados a pé. As compras de muitas famílias eram feitas por uma única pessoa, para reduzir os riscos de contágio. 


De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, a popular caipirinha surgiu nessa época, depois que as pessoas começaram a receitar limão, alho e mel com um pouco de álcool para os doentes.
Os brasileiros morriam aos milhares, principalmente em Rio e São Paulo. Cadáveres surgiam a todo instante. Ao longo dos anos, estudos ofereceram explicações diversas para a letalidade da gripe espanhola, cujo número de mortos superou largamente os 17 milhões de vítimas fatais, entre soldados e civis, da Primeira Guerra. Diferentemente do coronavírus, que leva muito mais riscos para idosos ou pessoas com doenças crônicas prévias, a epidemia de 1918 matou, principalmente, jovens adultos. Parte dos médicos acredita que isso acontecia justamente porque, nessa camada da população, a defesa do orgnismo ao vírus era mais forte, o que fazia os pulmões se encherem de fluídos, matando as pessoas por "afogamento".

Uma revisão de pesquisas científicas realizada em 2007, porém, sugeriu que a infecção causada pela gripe espanhola não era tão mais letal do que outras estirpes de influenza. Segundo essa teoria, as altas taxas de mortalidade foram consequência de malnutrição e das péssimas condições de higiene do começo do século XX, somadas ao tempo prolongado de internação em campos hospitalares lotados.

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