segunda-feira, 19 de agosto de 2019

UM PAI, UM FILHO E UM MÉDICO

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HISTÓRIA DE UM  PAI


                    No início de minha vida profissional fui plantonista de um sério pronto atendimento.

           Nestes plantões eram lotados dois médicos, os atendimentos eram para pacientes emergenciais, os casos mais graves eram transferidos e recebidos com todo o prazer pelos plantonistas da unidade Hospitalar que davam suporte a este pronto atendimento.

                 Naquela época, como nos dias atuais, era discutido o que é um atendimento de urgência, o que deve o médico atender, até que ponto é ético o médico dizer este caso não é emergência e não deve ser atendido  nesta casa e sim por outra unidade, unidade esta que neste complexo existia e muitas vezes com especialistas.

                   Era um dia de domingo, 03h30min da manhã, chovia  e a cidade estava deserta, não me recordo o motivo, a pediatria  encontrava-se desativada , recomendado cautela,  os pacientes eram atendidos alternadamente , até a meia noite era intenso o movimento, depois caia consideravelmente, neste horário chegou um senhor de uns 40 anos de idade, trazia embalado nos braços envolto num grosso lençol uma criança de 4 a 5 anos , foi até a recepção , disse que o filho estava com febre e dor na garganta.

                   A recepcionista explicou que não se tratava de uma emergência e que deveria procurar  o serviço adequado logo que o dia clareasse, o ambulatório de otorrinolaringologia .

                    Humildemente, sem saber o que era um ambulatório e até mesmo o que significava a complicada palavra  otorrinolaringologista,  o senhor sentou numa cadeira defronte a televisão , que passava a noite ligada,  pensou, refletiu, voltou para a recepcionista, tentou explicar a sua presença daquele horário , não logrou   sucesso, voltou à sua insignificância , sentou-se na última cadeira protegida pela grande porta   de vidro temperado , protegia cuidadosamente a sua cria do frio e dos respingos da torrencial chuva que banhava o solo soteropolitano  da  Bahia de meu Deus.

                  Com o menor aconchegado ao colo e cheio de amor     solicitou que lhe mostrasse quem eram os médicos, queria falar e solicitar pelo o amor de Deus que atendessem o seu filho, o médico da vez respondeu que aquele caso não configurava uma emergência e poderia muito bem esperar até o amanhecer. O esculápio pensou:  " amigdalite às 3h30  da manhã, era brincadeira, porque não levou o garoto durante o dia no ambulatório apropriado, resmungou para si, amigdalite às 3 e 30, é demais .

                  Ao ver a cena e sentir naquele pai um semblante de diminuição, de inferioridade e de desvalorização como cidadão, chamei o colega, solicitei que atendesse , foi irredutível,  o colega, como Pilatos,  lavou as mãos.  

                  Não pensei duas vezes, mandei fazer a ficha , solicitei que colocasse o pai e o filho no consultório, chamei o colega e frente a frente iniciei a consulta, não uma consulta médico-clínico, mas uma consulta médico-social.

                 O pai revelou que morava na periferia, que saíra de casa às 06 horas da manhã, trabalhava numa empresa encostada noutra, nem mais era terceirizada, o transporte era uma casinha adaptada sobre a carroceria de um caminhão, não tinha alimentação  nem garantia de emprego , era o último a chegar em casa, no subúrbio ferroviário,  depois de uma peregrinação por toda a cidade  devido o despejo dos seus pares que moravam em pontos diversos.

                 Naquele dia havia deixado a fábrica às 22h, rodara por mais de 150 quilômetros, ao chegar em casa, sem almoço e sem jantar, sem banho e possuído pelo cansaço foi avisado pela esposa que o menino estava com febre e esperava o pai para levá-lo ao médico , matou a sede, encostou a mochila e a marmita, embalou a criança e debaixo de chuva  andou a pé três mil metros, pegou o trem suburbano que se conectava com o ultimo ônibus e depois de rodar 30 quilômetros atingiu o fim de linha, um turístico logradouro, desceu a pé um íngreme , enladeirado , longo e deserto percurso da grande praça ao longínquo serviço de urgência. 

                     Na solidão do caminho, na escuridão da noite, sob o frio da úmida e torrencial chuva, arriscando as suas vidas mergulhou na realidade.  Na cabeça um turbilhão de pensamentos, todos de baixa estima: pobre, não bonito, suburbano, pertencente a uma categoria sem valor, afro descente,   naquele dia sem se alimentar e cansado foi tomado pelo desânimo, porém, tinha um filho, possuía um rei, possuía uma das razões que justificava viver, que justificava todo e qualquer sacrifício, aliás, levar o seu filho a um médico não era sacrifício, era um prazer apesar da imensa tristeza.

                       Pensava no seu trabalho, na sua família e  no seu pai, via e sentia naquela hora, naquele momento como era difícil a vida, como era dura, como era insignificante diante do mundo, ainda bem que existia o médico, este sim me compreendia, este sim era homem de coração bom, este sim atendia a toda hora, atendia em todos os momentos, nos momentos de necessidades e sempre alegre, sempre rindo, ainda bem que existia o médico, neste mundo só o médico, somente o médico era verdadeiramente humano, quem era ele para ser atendido, para receber a atenção daquela espécie de homem, homem estudado e importante, o homem de branco, inclusive por ele ser um simples operário era condição suficiente para não ser atendido, ainda assim o médico atendia,  atendia porque era humano, porque era bom, porque era gente, apesar de estudado era gente e foi assim que veio pensando em todo o seu longo e difícil trajeto, imaginava encontrar um amigo, um amigo que lhe escutasse, que lhe estendesse as mãos , que lhe acolhesse , que lhe desse  atenção e  que lhe desse socorro, ainda bem que existe o médico. Disse também que saiu preocupado como voltaria, com que carro, com qual dinheiro e para ir ao trabalho no outro dia, sem dormir, sem comer, sem condições de faltar e se fosse demitido? Porém, nada disso era mais importante do que aquele filho, nada tinha mais importância do que a saúde do seu filho, ainda bem que existe o médico, ainda bem que ainda existe a compaixão, ainda bem.

           O colega frente a frente com o relato , cara a cara com o menor  e o pai , silenciosamente escutava o relato paterno.

            Aquele depoimento era mais um desabafo, um desabafo social, um desabafo para com ele mesmo, um desabafo quem sabe, talvez para com DEUS, e o colega escutava calado, silencioso, olhar perdido, o colega estava noutro mundo, o colega viajava, estava  bem distante, não sei onde, num lugar longínquo; cabisbaixo. Repentinamente, com os olhos marejados, voz trêmula, rompeu o silencio , abraçou o guerreiro pai e balbuciou:

“PAI, AH SE TODOS OS PAIS FOSSEM ASSIM! COMO SERIA DIFERENTE”.

                   Pegou as rédeas do atendimento, arranjou energia não sei aonde, atendeu, conversou, riu, ofereceu o seu lanche noturno e o café da manhã para aquele pai exemplar , alimentou a criança , pediu-me que passasse o plantão pela manhã e com a criança medicada, a bolsa cheia de amostras e muita disposição foi conhecer na periferia onde morava um homem, onde morava um cidadão , onde morava um verdadeiro pai e saíram os três na mesma condução .

               Ainda hoje, nos encontros da vida escuto do nobre e gentil colega : “Meu amigo, muito obrigado, a medicina não é só conhecimentos técnicos é muito mais. A medicina é o social, é o humanismo, é a ética, é o altruísmo, a medicina é a essência da cidadania, é compaixão, a medicina é uma das representantes fiel de Deus”.

             Ser médico enfim, é ser um misto de tudo quanto é de bom, ser médico é ser provedor, acolhedor e compreender os encontros e os desencontros do homem e da vida  , ser médico é apenas ser Médico.

APENAS.

                         Iderval Reginaldo Tenório


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