sábado, 30 de dezembro de 2017

CASOS VIVIDOS POR UM MEDICO RESIDENTE EM CIRGIA GERAL


CAUSOS DA RESIDENCIA MEDICA - A LUXAÇÃO DO OMBRO


Dois causos vividos por este seguidor de Esculápio


CAUSO N-1


DONA MARIA


 Hospital Roberto,1986 , Salvador Bahia.

 Médico Residente de Cirurgia Geral


 Hora do   almoço-


 Dona Maria era uma das funcionárias ,  que  na rampa do restaurante  colocava os alimentos nas bandejas de aço, utensílios estes  divididos em 04 ou 05 compartimentos.


Neste dia  seria servido como complemento,  cubinhos de abóboras, por sinal muito gostosos, principalmente  quando untado na manteiga.


Eu na fila, bandeja na rampa e do outro lado dona Maria, senhora pícnica e da  cara redonda,   roupa comum , um grande jaleco branco por cima, touca na cabeça, braços curtos, luvas de polietileno incolor e voz estridente, beirava uns 50 anos, porém com a aparência dos seus 60
" Quer abroba dotô Reginaldo, o sinhô quer abroba na manteiga ?" Já com a concha cheia de cubinhos a despejar na minha bandeja  .

Na fila muitos residentes, muitas enfermeiras e muitos funcionários à escuta, modéstia à parte , era eu o único Residente Cearense do Hospital , o mais simples e o mais nordestino da turma, dona Maria e todos os funcionários tinham uma grande identificação com este mortal, o Hospital era uma verdadeira família.

Olhei para Dona Maria e respondi num tom de brincadeira com a minha 
bandeja à espera da gostosa Cucurbitaceae, assim me pronunciei
 "Dona Maria,  na minha terra,  o Ceará,  quem come abóbora é porco". 
 Dona Maria não contou conversas e nem titubiou, na bucha, na lata e em tom de gozação  emendou :
"Aqui tumem dotô, aqui tumem,  quer mais um pouco?"

Não ficou nenhum funcionário que não caísse na risada

Foi assim os melhores dias naquela casa,  que era uma verdadeira família.


                                    Iderval Reginaldo Tenório





CAUSO N-2

O ESPECIALISTA


Era eu o cirurgião Geral do Plantão e chefe de equipe.


Ao chegar na sala da ortopedia, estava deitado na maca  um senhor que beirava os 50 anos, encontrava-se rodeado por  três ortopedistas, dois residentes, o R1 e o R2, quatro internos, duas auxiliares de enfermagens e um clinico a confabular como resolver aquele caso, já entrei a indagar.

___Quer que houve aí doutores? Que reunião é esta?

___Esse senhor luxou o braço direito e estamos aqui tentando resolver o caso.


Foi a resposta de um dos residentes de ortopedia.

Atlas aberto, desenhos múltiplos sendo discutido por toda a equipe, 
residentes empolgados , diazepam nos músculos, técnicas aplicadas e todas as manobras sem resultados.

Entrei, solicitei aos mesmos se poderia contribuir, recebi o sim. Perguntei pelo seu nome, falei que o cabra era macho, não era como esses frouxas da capital, certifiquei da causa da luxação, conferi  o diagnóstico, era  uma luxação verdadeira. 


O paciente tomou afeição por este cirurgião de plantão, depois de 10 minutos de papo até parecia que já éramos conhecidos de longas datas, falei da vida que levei na lida do campo, nas laçadas  de bois, nas amarras de feixes de lenha, dos banhos de rios, das  corridas de cavalos e nas pegas de bezerros bravos nos braços, falei das   quedas, dos arranca unhas nas capoeiras dos sertões e da lida com o gado pé duro, gado de orelha curta, gado criado na caatinga. O homem se entusiasmou.


 O seu braço luxara pela manhã,  quando jogou o laço na pega de uma vaca e no puxão que deu,  a cabeça do úmero saiu de sua cavidade

Pedi licença aos ortopedistas para aplicar a velha manobra aprendida no saudoso  Hospital de Urgência da Bahia- o tradicional HGV, maior escola de urgência do estado, recebi a aprovação de todos.

Expliquei ao paciente a manobra que faria, o paciente concordou , então com voz firme ordenei:

___Fique reto na maca, estique os braços colado ao corpo, vou puxar o braço direito afastando do seu corpo até a sua colocação na cavidade que já expliquei ao senhor,  pode doer um pouco,  mas,  peço para agüentar, cabras do nosso tipo não abre nem pra boi bravo, imagine pra uma bobagem desta, vou mandar os meninos segurar a maca e outro segurará o seu tórax.

Tirei o meu querido dokside branco do pé direito, tirei a meia surrada, levantei a minha perna direita ,  com o dedão maior do pé  na axila do paciente,  localizei a cabeça do úmero, o  odor ocre de peixe ardido do meu pé infiltrou-se nas suas narinas, me pendurei esticando o seu braço  direito como se fosse uma corda, os músculos foram relaxando, relaxando,  até o ponto máximo de afastamento permitido pelo paciente, com uma manobra plácida e certeira , uma manobra serena , empurrei com o dedão a cabeça do osso na cavidade da omoplata e lá estava a luxação resolvida.

O paciente não contou conversas, levantou, abriu os braços, fez diversas manobras sem dor e abriu o bocão.

____É doutô, graças a Deus, foi Êle que mandou o senhor,  esses homens iam me matar, já chega os de Candeias e os de Camaçari que quase arrancam o meu braço, ando a dois dias e sem solução,  obrigado doutor, obrigado.


E em voz alta exclamou:


 AINDA BEM QUE CHEGOU O ESPECIALISTA.

Foi uma tremenda gargalhada.


Tem horas que a tática fala mais alto.



                                Iderval Reginaldo Tenório
                                       Médico Residente R4
                                              1986


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